quinta-feira, novembro 17, 2016

Post 5886 - 4/10 - Horas Perdidas ou Os Entes Queridos

Horas Perdidas
A 24ª Hora – Último Capítulo

Um, dois, três,
Um, dois, três,
Era como ouvia o relógio.
Um, dois, três,
Um, dois, três.
O som enchia o pequeno espaço. Estava deitada, na sua cama, no seu quarto, transpirada e fria.
Passara a noite em claro, com pensamentos pesados e escuros.
Dali a duas horas, pelas oito, chegaria a Enfermeira.
Como de costume, o barulho dos pássaros tinha precedido o surgir da luz. Quase tinham conseguido sobrepor-se ao relógio, mas no fim este vencera.
Um, dois, três,
Um, dois, três.
Custava-lhe respirar. Sabia a dor, do seu corpo apodrecido, apenas amortecida pela morfina.
Nos últimos dias, os seus últimos dias, tinha tentado escrever o que fora a sua vida no caderno moleskine que lhe deixara o Luís. Precisava de um epílogo que queria e não queria encontrar. Quando o fizesse, ia descansar, mas depois não havia mais nada. Despedira‑se de todos os que lhe importavam, deixara todos os assuntos resolvidos.
Já escrevera sobre a doença, o abandono e solidão que sentia, e a morte anunciada que não conseguia mais adiar
Sabia agora que todas as horas em que por cobardia se tinha afastado, revividas em cada um dos vinte e três capítulos que penosamente descrevera no moleskine, tinham sido as suas horas perdidas.
Procurou refúgio nas memórias mais antigas, quando tudo parecia possível, no abrigo dos abraços dos seus pais, quando era criança, ainda vivos e jovens, no encantamento do seu primeiro amor.
Deixou de ouvir o “um, dois, três”.
Sorriu e soube depois que morria.

Ou


Os Entes Queridos
Do destino dos personagens mais queridos tratámos no capítulo anterior, resta a velha menina, a eterna guardiã dos valores familiares. A mulher que nunca dobrava, nem modificava os seus julgamentos dos outros e jamais voltava o espelho sobre si própria. A velha menina iniciara um estranho processo de encolhimento lento; no espelho em casa, nos reflexos das montras, nas câmaras de vigilância, revia-se cada vez mais pequena. Por outro lado, os murmúrios do vento transformavam-se em vozes, ouvia os entes queridos a repetirem velhas máximas, mais tarde conseguia mesmo conversar com os desaparecidos. A casa estava a ficar com menos espaço para ela, os entes queridos ocupavam os seus lugares favoritos e divisão após divisão ficava cerrada para ela.
Aqueles que fora tão pronta a julgar e a condenar tornavam-se insubstanciais, sombras sem importância, que não lhe faziam falta. Caminhava nas ruas e as vozes começaram a acompanhá-la. Pouco falava com os lojistas, vizinhos, conhecidos de anos. O tempo perdia o seu poder, luz e sombra, os dias perdiam a individualidade. A limpeza da casa já não lhe importava, as refeições aconteciam quando se lembrava, o seu aspecto físico já não era importante agora que estava a tornar-se tão minúscula.
De vez em quando saia para trazer provisões, grandes sacos pesados que arrastava para dentro da cozinha. Até que chegou o dia em que carregada com aqueles tropeçou num tapete e caiu, a perna fez um som estaladiço insuportável, perdeu a consciência e quando abriu os olhos descobriu-se imóvel, fundida aos mosaicos do chão da cozinha, mas não teve medo porque as vozes dos entes queridos a confortavam, embalavam enquanto lentamente se dissolvia…  

3 comentários:

  1. A imaginação e a criatividade da Gábi à solta.
    Como sempre, muito bom!
    Beijinhos

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  2. Muito obrigada Pedro, mas eu só escrevi o primeiro :)
    um beijinho

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